A máscara me trouxe mais um enigma. Coisa boa da covid 19.

Antes, não tinha o desejo de saber que gosto, que desgosto, que alegria, que tristeza pontificavam atrás do rosto. Antes, o rosto se dava por inteiro, e os lábios apareciam de todo. Lábios múltiplos, ternos, tímidos, túmidos, tépidos, anônimos, pálidos, carnudos, melancólicos, devassos, infernais, paradisíacos.

Antes, tinha a boca para desejar, com seu sal e saliva, os sortilégios que brotam da intimidade da carne e parecem luz ao buscar a geografia desconhecida de outros idiomas.

Antes, tinha o rosto, completo e refeito, na travessia do olhar que vê para além do visto. Antes da máscara, o mundo da beleza se espraiava na gratuidade das ofertas cotidianas. O mundo era claro e aberto como as coisas naturais.

Mas gosto do mistério. Amo as coisas incompletas. Gosto do que apenas se insinua e nunca se realiza. Gosto das plenitudes fraturadas. Pode parecer estranho, mas gosto da máscara.

Começo a imaginar as histórias que não foram narradas por trás das pupilas observadas de relance. As sobrancelhas ganharam dimensões outrora imperceptíveis. São elas, agora, que nos convidam à volúpia dos naufrágios em sua insensatez feita de sombra e poesia.

A máscara é como aqueles poemas do século XVII, cheios de sinais significativos e de significados cifrados e alucinantes. Nas mulheres que usam o véu, lá pelas bandas da Arábia, tudo está codificado pela lei moral e pelo dispositivo religioso. Aqui, não. Aqui, máscara é fruto da tragédia. E dentro de seus círculos escuros e concêntricos, existe a possibilidade da beleza, do ardor, do horror e do crime.

Mas, vejamos bem: já não usávamos a máscara? Sim, essa máscara horrível das representações sociais, símbolo corriqueiro da hipocrisia e da ideologia do consumo. Prefiro, portanto, à da covid. Negra, branca, colorida, delicada, geométrica, simples, sofisticada, lírica, épica, dramáticas como as nuances históricas e epidêmicas da própria linguagem.

Se ela é morena, a máscara que calha bem deve ter a coragem insubstituível da liberdade. Se ela é alva, alva como os dedos imaculados da aurora, realça melhor o tecido escuro das linhas arenosas com que se tecem a pele do amor.

Na verdade, nem a cor, nem a marca, nem o tecido, nem o formato, nem o tamanho, nem a medida importam tanto na nudez da máscara. Importa, sim, o que a máscara esconde e promete.

Elas, de certo modo, ficaram mais elas. A máscara parece habitada por uma sensualidade incompreensível e, não sei por que, cada máscara pede uma leitura, um sonho, uma carícia, como que dizendo: “Estou aqui e ali onde a ausência se formula com seus poderes mágicos e seus infortúnios deliciosos”.

Por ora, acabou-se o reinado do lenço, do xale, do cachecol, do manto, da luva, da fita, da película, do cinto, definido curvas e linhas, detalhes e epifanias. Agora, o império é da máscara, na exclusividade dos olhos.

E elas continuam sendo elas. As mesmas. Magia e auréola. Reais e inatingíveis. As que ninguém entende, muito embora admiradas e amadas no esconderijo da imaginação e do silêncio que possuem as melhores coisa do mundo.

Autor(a):

Hildeberto Barbosa Filho
Poeta, escritor, professor da UFPB aposentado e membro da Academia Paraibana de Letras.