João Ninguém

João Ninguém estava voltando para casa como se fosse um rei, pois algumas horas atrás havia conseguido derrotar o Dr. França Silva em uma briga de galo. Naquele momento, João nem sequer lembrava que tinha sessenta e oito anos e que havia de pedalar do Bairro São João à Usina Santana caso quisesse chegar a seu mísero casebre. Nem se dava conta que a bicicleta estava toda corroída pela ferrugem e que as câmaras de ar dos pneus precisavam ser trocadas.

Para João as árvores da estrada eram torcedores gritando por sua vitória. O longo caminho de piçarra era um tapete vermelho pisado pelos nobres. As roupas que vestia nem ao menos demonstravam o peso do tempo apesar de clamarem por uma aposentadoria. Nem lhe vinha à cabeça a lembrança da falta de comida em casa. Naquele momento, João se sentia como nunca havia se sentido antes e com seu galo todo machucado pendurado na garupa pensava estar no céu.

Mas, quem era João Ninguém? Era um senhor idoso que aparentava ter mais idade do que realmente tinha. Possuía cabelo cacheado já sem cor e ansiosos por uma tesoura. Era daqueles magros altos de nariz fino e comprido. Levava no rosto as marcas do tempo, uma barba mal aparada e uns olhos castanhos arregalados. Parecia uma verdadeira caricatura.

Vivia de construir grades de madeira para galos de briga. Era uma espécie de marceneiro oficial dos galistas de Teresina. Morava sozinho, pois a maioria de seus familiares havia morrido ou se mudado para as grandes cidades. Com isso, o pouco convívio social que tinha se resumia a uns colegas que conquistou com os anos de briga de galo. Era a rinha o grande entretenimento de sua vida.

Todo o final de semana, pedalava a velha bicicleta da Usina ao Bairro São João a fim de ver as brigas de galos. Na rinha, revia os amigos, recebia encomendas para construir grades ou consertá-las. Gritava, torcia e se divertia. Assim, se sentia em casa e esquecia as durezas da vida.

A rinha foi sempre um ambiente democrático. É frequentada por ricos e pobres. Só não é frequentada pelas mulheres, o que não poderia ser diferente, pois a crueldade de uma rinha é incompatível com a delicadeza feminina. No entanto, combinava bem com João. Porém, a briga de galo é um jogo caro. Exige gastos com comida, com aquisição do plantel, com a reprodução, com a instalação do criadouro e com as apostas. Ou seja, exige tudo que João jamais teve ou teve em escassez. Assim, só sobrava para o velho ser um mero expectador. Raramente colocava um galo para brigar, mas não faltava vontade.

Na rinha, quando os grandes galistas colocavam os galos no tambor onde aconteceriam as brigas, João ficava a admirar cada ave. Olhava o padrão do galo, a musculatura, a tosa, a coloração da pele e das penas. Conforme a observação feita, escolhia para qual iria torcer. Mas, a regra nem sempre se faz presente. João Ninguém, apesar de todas as adversidades, chegava a colocar um galo para brigar. Era um fato raro e pouco expressivo no mundo “galístico”.

Um certo dia, João ganhou de um grande galista um galo combatente fantástico. Era quase perfeito. Brigava com agressividade e se rebatia dos golpes do adversário. Além disso, tinha força e fibra. O padrão da ave era maravilhoso. Possuía um bico grosso e forte que parecia ser de uma águia. Os olhos entravam no rosto e davam um aspecto de crueldade. A crista era vermelha, bem pequena e firme. O pescoço tinha a forma de uma foice e, além de musculoso, era proporcional ao corpo. O peito era levantado como se a ave tivesse a importância de um rei. Possuía, também uma musculatura firme e rígida dura como pedra. As penas eram pretas e se colavam ao corpo formando um escudo. As coxas eram grossas e fortes. Na canela ainda havia um esporão serrado bem no tronco. Para completar a beleza do galo havia uma calda belíssima que apontava para o chão. Era um animal de respeito.

No entanto, a partir do momento em que a ave passou para as mãos de João Ninguém perdeu todo o valor. Mas, o velho não se importava e passou a preparar o galo para combate. Tosou o animal no pescoço e nas coxas. Passoua dar banho de sol, além de lavá-lo diariamente. Fazia o galo passear em uma grade enorme. Por fim, realizou o “trato” adequado. Mas, não ficou como deveria. Faltava dinheiro para comprar a melhor ração, o melhor complemento alimentar e os remédios. Assim, o galo de João tinha um “meio trato”. Mas, apesar disso resolveu levá-lo para a rinha.

Chegou o dia da briga. João acordou bem cedo e fez suas atividades domésticas básicas. Vestiu a roupa menos pior. Pegou o galo. Amarrou-o junto à garupa e partiu. Quando chegou à rinha, o sol já derretia o asfalto da avenida João XXIII. Mas, a ave chegou bem. Na rinha, João obteve autorização para deixar o galo em uma grade. Depois, foi a uma mercearia tomar um café e esperar o entardecer para dar início às lutas. Enquanto isso, ficou batendo pernas pelo São João, visitando colegas e anunciando a briga. Mas, ninguém se importava com aquela conversa.

Quando o entardecer chegou, João foi para a rinha e anunciou a presença de um galo para brigar. Todo mundo que estava presente achou graça. Quando perceberam que o galo era do João, veio uma chuva de galistas para emparelhar galos. Mas, o único que deu no mesmo peso e altura foi o do Dr. França Silva, médico famoso e galista de renome. João desejou fazer a briga apesar dos conselhos em contrário. Porém não tinha dinheiro para apostar. Foi preciso vários criadores fazerem um “bolão” para a briga acontecer. Um deu cinco, outro dez, vinte, até alcançar o valor de cem reais.

Aposta feita, chegou a hora de “calçar”, ou melhor, colocar esporas artificiais nas aves. O trabalho foi feito com maestria. Depois, colocaram os bicos artificiais para melhorar a preza e, por fim, molharam os galos.

João chegou primeiro ao tambor e soltou o galo para caminhar um pouco. Ao ver que o animal era de João, ninguém da plateia que lotava a arquibancada quis apostar. Já bastava a aposta feita para a briga sair. Porém, quando o galo do médico pisou no tambor, choveu gritos de pessoas querendo apostar no animal recém ingresso.

Logo em seguida a brigateve início. Os galos passaram a se rebater e a pular de forma ágil e agressiva. Penas e pontos de cigarros voaram. Dezenas de olhos arregalados nem sequer piscavam. Minutos depois, as aves se encostaram e passaram a embolar os pescoços tentando encontrarum lugar para prezar. Quando a preza era feita, os galos pulavam tentando acertar as esporas um no outro. Era uma briga violenta.

Não demorou muito e o galo de João já estava bastante castigado, quando de repente levou um golpe que o fez pular para fora do tambor. O galo ficou meio encurvado como se quisesse cair. A multidão em delírio gritava com o fato –eram os apostadores contrários na expectativa de receber suas apostas. Mas, João com bastante experiência pegou o galo e ficou fazendo massagem.

Os torcedores começaram a gritar pedindo para colocar o animal no tambor. João criou logo um pequeno tumulto com os escandalosos só para ganhar tempo de a ave se recuperar. Quando acabou o bate-boca, a ave já estava em uma situação bem melhor.

A briga reiniciou.

O galo do médico passou a bater com mais disposição e o do João apenas ficava de pé procurando se encaixar na briga. Mas, não teve tempo de reagir. Estava acontecendo um massacre. Uma ave batia dez vezes e a outra apenas olhava. Não demorou muito e o galo de João estava cheio de sangue que escorria do pescoço ao peito.

Tempo depois perdeu um olho e o outro estava praticamente fechado. Ficava jogando o bico no vento procurando o adversário, mas não o encontrava. O galo inimigo se alojava no olho cego e batia quando bem queria.

Tocou o relógio! Acabou o primeiro tempo da briga, ou melhor, “a primeira água”. João pegou seu galo e o levou para ser molhado em uma pia. A água cristalina que molhava o pobre combatente era tingida de vermelho. O bico de prata foi tirado e substituído por outro em melhores condições. João pegou uma pequena tesoura e cortou a carne que caia sobre o único olho que sobrou a fim de fazer a ave enxergar alguma coisa.

Cinco minutos depois a luta foi reiniciada. Com a pequena cirurgiao galo de João passou a render mais. Já batia mais um pouco, quando o adversário acabou furando o outro olho. O galo ficou totalmente cego e o massacre continuou. Lá estava um animal lutando dignamente pela vida enquanto morria pouco a pouco sem ninguém o acudir. Jogava o bico no ar tentando achar o inimigo invisível. Porém, quanto mais procurava o adversário, menos o encontrava e mais castigo recebia.

Chegava a dar dó, mas dó não é qualidade dos galistas. O sangue que escorria já molhava o carpete do tambor. Dava para ver os furos na carne a escorrer vida e o galo imponente se transformou em uma ave miúda e assustada. As penas já não brilhavam e só faltava chegar a morte para dar fim ao sofrimento.

Quando a vitória do adversário era dada por certa, o galo de João conseguiu prezar e com uma “batida de asa” deu um “tiro de pé” que deixou no chão o galo do médico. Caiu morto. Só teve tempo de agonizar no chão se tremendo e revirando os olhos.

A plateia foi ao delírio. Gritava e batia na parte interna do tambor, fazendo enorme barulho. Uns se abraçavam enquanto outros ficavam sem acreditar na derrota sofrida. João ficou tão eufórico que ao comemorar caiu no tambor abraçado com o galo. Suas roupas ficaram encharcadas de sangue. Mas não importava.

Ali era seu dia. O dia da caça. O dia do fraco. Ali era a rinha, um jogo de azar. Como na vida, lá o forte costuma levar vantagem. Até que um dia vem um rato para roubar o queijo. No dia seguinte, o galo de João amanheceu morto e o marceneiro acordou do sonho.

Autor(a):

Ricardo Luís de Almeida Teixeira é escritor e defensor público do Estado do Maranhão.